Um projeto de arquitetura nasce de nuances, da empatia para com os usuários e de uma compreensão profunda de seu contexto específico. Melhores soluções são aquelas que atendem tanto às necessidades e os anseios dos clientes quanto questões de contexto e identidade. Neste sentido, o projeto interseccional pode ser entendido como uma abordagem que leva em conta diversos fatores —de identidade, gênero, raça, sexualidade, classe e muitos mais — e como estes interagem entre si. Considerando isso, quanto melhor compreendermos as questões de relativas ao contexto específico e ao usuários para os quais projetamos nossos espaços, melhor serão nossos edifícios e, consequentemente, as cidades que estaremos construído para o futuro.
O termo interseccionalidade foi cunhado pela jurista, professora e intelectual afro americana Kimberlé Williams Crenshaw em 1989 como elemento fundamental de sua teoria crítica de raça, na qual ela defende que muitos indivíduos enfrentam diferentes formas de discriminação simultaneamente. Neste contexto, incorporar experiências múltiplas em termos culturais, políticos e também arquitetônicos e espaciais pode ser a solução que nos levará a projetar espaços e cidades mais inclusivas e equitativas no futuro. Tal abordagem inclui o engajamento e consulta das comunidades envolvidas através de uma série de diferentes estratégias como o Guia para Aplicação da Interseccionalidade criado por Joanna Simpson, assim como uma série de políticas inclusivas, representatividade e treinamento. Projeto interseccional, então, é uma abordagem baseada em um auto-exame crítico prévio, o qual pretende desconstruir os preconceitos dos projetistas em relação a uma determinada comunidade e/ou contexto social específico.
Na ocasião do simpósio anual organizado pela Association for Women in Architecture + Design em 2018, o tema escolhido como mote do evento não poderia ter sido outro. “A interseccionalidade não é algo simples de ser alcançado, ou melhor, conquistado. Não é como se as estruturas existentes que temos — em termos de leis e políticas públicas — pudessem ser facilmente adaptadas segundo novos conceitos e contextos específicos. A interseccionalidade é uma abordagem que procura dar voz as invisibilidades de uma sociedade, chamando a atenção para o fato de que é preciso muito trabalho para nos desafiarmos consistentemente a estarmos atentos a aspectos de poder que não necessariamente nos afetam individualmente. Neste sentido, a atitude e vontade de mudar que nós, enquanto feministas, esperamos dos homens em relação às questões de gênero, também devem incluir questões de raça, sexo, classe e identidade para que estas luta de fato faça sentido.”
O objetivo é então envolver e reconhecer que todas essas demandas e lutas fazem parte daquilo que estamos chamando aqui de interseccionalidade. A abordagem interseccional reconhece os diferentes tipos de discriminação como pontos de sobreposição ou como pontos de intersecção. Desta forma, a interseccionalidade na disciplina de arquitetura e na industria da construção civil não é apenas uma luta política ou uma simples busca por reconhecimento, ela busca o estabelecimento de uma estrutura de responsabilidade coletiva e ação em direção a práticas mais inclusivas, igualitárias e socialmente justas. Como método e metodologia, a interseccionalidade poderia — ou deveria — ser aplicada em todas as fases de um projeto, do estudo preliminar ao executivo.
Andrés Jaque é um dos arquitetos que está buscando implementar uma abordagem interseccional à arquitetura em seu escritório Office for Political Innovation, com filiais em Nova Iorque e Madri. Em um de seus projetos experimentais desenvolvidos para uma escola, Jaque se propôs a considerar não apenas o dia a dia dos alunos, mas o contexto mais amplo da vida cotidiana destes jovens. A abordagem, então, se estendeu à estruturação de um novo ecossistema que procura discutir questões de consumo por exemplo, delineando um ambiente educativo em termos de sustentabilidade. “Também estamos projetando uma casa em uma das comunidades próximas à baia de Corpus Christi, no sul do Texas. Nossa proposta procura oferecer diferentes soluções em diferentes níveis e escalas. Por exemplo, de um lado esta casa servirá como uma espécie de refúgio ou retiro para uma família que vive em Dallas, por outro, ela opera como um coletor de água da chuva que armazena e redireciona a água para irrigar o mangue nos meses de seca — uma abordagem que procura minimizar os efeitos da erosão e a elevação dos níveis das marés na região. A casa é um refúgio luxuoso para a família e, ao mesmo tempo, contribui para manter o equilíbrio da paisagem natural circundante. O que estamos percebendo em nosso escritório é que a arquitetura precisa responder, de uma só vez, a diferentes realidades. Uma abordagem interseccional é aquela que tem a capacidade de responder a demandas e perspectivas muitas vezes díspares.”
O coletivo de arquitetura e design Matri-Archi é outro exemplo de prática que defende a abordagem interseccional em seus projetos. Em suas próprias palavras, espaços interseccionais surjem de uma busca por mudança e transformação em direção a um futuro social e ecologicamente sustentável do ambiente construído. “A Matri-Archi abraça um impulso coletivo para desmantelar, reparar e avaliar as falhas que estão bloqueando o potencial de nossa profissão de celebrar e desenvolver a diversidade dentro da educação e prática profissional. Ao ocupar e criar um espaço interseccional, é possível promover relações simbióticas com interações humanas que reflitam uma paisagem heterogênea policêntrica, na qual ideias idiossincráticas catalisam continuamente futuros compartilhados não discriminatórios.” Aqui, o projeto interseccional é tanto contexto quanto ação, uma sobreposição de discursos, esferas e contextos.
Procurando ir ainda mais fundo em uma abordagem interseccional na arquitetura, Jacquie Shaw está analisando como esta metodologia de projeto está crescendo e ganhando cada dia mais adeptos em escritórios de arquitetura e também em grupos de pesquisa. Em seu trabalho, Shaw procura examinar as maneiras através das quais arquitetos e projetistas estão confrontando e questionando seus próprios privilégios. Neste sentido, a reflexão e análise de nossos processos de projeto podem promover uma maior amplitude de compreensão necessária para melhor abordar as complexidades da prática profissional e das diferentes realidades do mundo de hoje. O trabalho de Jacquie é sensível a uma série de diferenças: gênero, identidade, etnia, nacionalidade, raça, classe, idade, habilidade, sexualidade, religião, entre outros. A mensagem é clara — todos nós merecemos ter nossas vozes ouvidas e nossas culturas e experiências únicas refletidas no espaço no qual vivemos.
A arquitetura tem o potencial de expressar diferentes perspectivas, condições materiais e escalas como parte de um processo definido pela multiplicidade de valores e pela diversidade social e humana. Inerentemente, a disciplina da arquitetura não é uma prática isolada ou soberana. Arquitetura é tanto função quanto estética, é tanto política quanto social, aborda questões econômicas ao mesmo tempo que procura responder a critérios de sustentabilidade. Ao abordar questões de justiça social e ambiental fazendo uso de estratégias interseccionais, arquitetas e arquitetos estão começando a ressignificar não apenas a forma como concebemos e construímos nossos edifícios e espaços, mas também o seu papel na sociedade e, principalmente, a quem seus edifícios deveriam servir. Para revolucionar a arquitetura a partir de dentro, o projeto interseccional nos oferece uma ferramenta através da qual todos nós, projetistas, deveremos começar a confrontar nossos próprios privilégios e relações de poder — algo que finalmente nos permitirá transformar, de dentro para fora, nossa prática profissional em busca de um futuro melhor e mais equitativo.
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